Nas últimas semanas tem surgido muita discussão envolvendo eficiência em combate, artes marciais e competições. Essa discussão foi alavancada principalmente por uma entrevista recente concedida por Royce Gracie ao Canal Combate. De todas as posições sobre isso existem duas que se contrapõe que precisam ser revistas e analisadas por outro ângulo.
A primeira acredita que a competição esportiva é algo ruim porque distorce as artes marciais. Segundo essa opinião o combate competitivo não é arte marcial de verdade, já que na “vida real” a luta não tem regras. A segunda posição acredita que o combate esportivo é a forma mais avançada, “evoluída” de combate. De acordo com ela, a competição esportiva é o melhor espaço para se testar a eficiência em combate das “artes marciais tradicionais”.
Cada uma do seu jeito, as duas misturam arte marcial e esporte de combate como se fossem uma coisa só. A primeira faz isso ao acreditar que o esporte de combate é uma forma errada de se praticar artes marciais. Já a segunda o faz ao acreditar que a competição é a melhor forma de se avaliar uma arte marcial.
Assim, este artigo vai rever as duas posições para esclarecer o assunto sobre se eficiência em combate se testa em campeonatos.
CUIDADO Com o Uso do Termo Tradicional
Antes de qualquer coisa é preciso, primeiro, ter cuidado com o uso do termo “tradicional” para definir artes marciais. Afinal, será que o que é considerado tradicional hoje era tradicional há 100, 200, 300 anos? Será que o que é tradicional aqui no Brasil é tradicional na China, Coreia, Japão, etc?
É preciso entender que conforme as tradições se tornam obsoletas elas se modificam. Assim, quando algo tradicional perde seu sentido dentro de determinado contexto cultura, ele se transforma ou outra coisa se torna tradicional em seu lugar.
Assim, aquilo a que nos referimos como tradicional hoje, nem sempre foi, poe isso devemos tomar cuidado ao usar este termo. Mas esse é um assunto que não será aprofundado neste artigo. Para isso eu sugiro a leitura deste artigo do meu grande amigo Guilherme Amaral Luz.
O esporte, por exemplo, é um fenômeno cultural muito importante na cultura contemporânea a nível mundial.
Muitas pessoas acreditam que o desenvolvimento das artes marciais é uma curva ascendente, ou seja, que com o passar do tempo sua eficiência em combate só melhora. Só que nem sempre é assim, depende do contexto histórico.
As artes marciais recebem diferentes sentidos conforme a época. O esporte, por exemplo, é um fenômeno cultural muito importante na cultura contemporânea a nível mundial. É uma das manifestações da cultura corporal de movimento mais importantes da atualidade – se não a mais importante – e com certeza a mais influente. É natural que as artes marciais recebam essa influência.
Além do mais o desenvolvimento da arte marcial nem sempre foi ou é para melhor no sentido de eficiência em combate. Ao longo da história houve momentos em que a arte marcial se desenvolveu muito, tanto no sentido de combate como em outros. Mas também existiram momentos de declínio, por diversos fatores. Momentos de relativa paz na China ou no Japão, durante o Shogunato Tokugawa, foram responsáveis pelo declínio em termos de eficiência em combate.
Em muitas ocasiões o declínio das artes marciais se deu por desencorajamento de sua prática por parte dos governantes. Isso aconteceu, por exemplo, na Coreia durante o período Joseon. A aristocracia, que governava o país, desencorajava a prática das artes marciais (leia o Muye Dobo Tongji). Isso quase custou a conquista de Joseon pelos japoneses na guerra Imji (1592-1598), não fosse a ajuda de Ming (China) e as brilhantes táticas navais do almirante Yi Soon-shin.
O Esporte de Combate Prepara APENAS para o Combate Esportivo
Embora haja períodos de ascensão e queda, nem sempre o desenvolvimento das artes marciais é vertical. Muitas vezes ele é no sentido horizontal. Isso significa se desenvolver não em questão de melhor ou pior, mas simplesmente em outra direção. Esse é o caso do esporte.
O combate esportivo prepara o indivíduo para um contexto específico, que só acontece no esporte. É a situação do 1 contra 1, da divisão por sexo, peso, com tempo limitado, espaço controlado, regras, etc. No combate esportivo não se está rodeado por cadeiras, mesas, árvores, bancos de praça, carros passando e por aí vai.
Portanto o combate esportivo tem um contexto próprio, que é diferente das artes marciais enquanto defesa pessoal. E esse contexto dos campeonatos não é melhor ou pior, mas simplesmente diferente.
Combate Esportivo Também É Combate Real
Embora o combate esportivo pertença a um contexto completamente distinto, muitos defensores das artes marciais “tradicionais” o consideram inútil, que não serve para defesa pessoal, já que o combate real não possui regras. Precisamos ir com calma neste aspecto. O atleta de combate não atua na competição, ele não luta de mentira. O combate esportivo é real, só que é outra realidade, diferente da realidade da defesa pessoal.
Portanto, o combate esportivo prepara para essa realidade específica, onde os pesos são parecidos, há divisão por sexo, igualdade numérica entre outras regras. É um contexto completamente diferente da situação de agressão cotidiana da qual, infelizmente, muita gente é vítima. Na agressão cotidiana a vítima geralmente está em desvantagem numérica, não existe peso, divisão por sexo, os agressores geralmente estão armados e a vítima desarmada.
Para essa situação específica o esporte não prepara. Isso derruba a ideia de que as competições são o melhor lugar para se testar a eficiência em combate das artes marciais. Da mesma forma, a prática voltada para autodefesa não prepara para a competição. Por isso, tanto do esporte para a autodefesa como da autodefesa para o combate esportivo, sempre é necessária uma adaptação.
As Artes Marciais Podem Se Manifestar no Esporte
É preciso compreender que o esporte pode ser uma forma de manifestação das artes marciais, como pode não ser. O boxe e a esgrima, por exemplo, são esportes de combate, mas não manifestações de nenhuma arte marcial específica. Já o sanda pode ser uma forma de manifestação das artes marciais chinesas, assim como a forma, a filosofia e outros elementos também são.
Mas o sanda pode também não ser uma manifestação das artes chinesas, isso depende de onde ele é praticado e por quem. No Brasil, muitos praticantes das artes marciais chinesas tradicionais praticam o sanda esportivo. Já na China os seus praticantes dificilmente praticam as artes marciais tradicionais.
Na verdade, o sanda está mais para um esporte de combate separado das artes marciais do que uma manifestação dela. Isso porque ele foi criado dentro da concepção ocidental de esporte, que provavelmente é diferente da oriental. Vale ressaltar que o fenômeno esportivo moderno e o termo esporte são tipicamente ocidentais, mas esse é um assunto para um artigo futuro.
De todo modo, o combate esportivo do karatê é uma manifestação da arte marcial karatê. O combate esportivo do taekwondo é uma manifestação do taekwondo enquanto arte marcial. Já o taekwondo WTF, diferente do ITF, segue uma lógica parecida com a do sanda. Seus praticantes o praticam geralmente sob a lógica do esporte olímpico.
É preciso entender que arte marcial e esporte de combate NÃO são a mesma coisa.
Dessa forma, temos essa possibilidade do esporte ser um desdobramento das artes marciais, que pode ser praticado, como pode não ser. Algumas pessoas optam por praticar o esporte de combate, outras a arte marcial. Existem também aquelas que praticam os dois, levando o esporte mais a sério e a arte marcial tradicional mais como um hobby. Ou, como eu, que levam a arte marcial mais a sério e tem o esporte como um hobby.
É preciso entender que arte marcial e esporte de combate não são a mesma coisa. O esporte é um fenômeno à parte com características próprias. Sendo assim, é preciso entender que o esporte pode estar dentro da arte marcial, mas não é a arte marcial em si. Significa que a arte marcial pode se expressar também no meio esportivo, mas isso é opcional.
É preciso também tomar cuidado ao julgar a arte marcial como algo melhor do que o esporte por descender da guerra. Afinal, as artes marciais que conhecemos hoje em geral são artes marciais civis e não militares. Então, essa relação da arte marcial com a guerra não é exatamente como as pessoas pensam. O Guilherme explica muito melhor esse assunto neste outro artigo.
Eficiência em Combate Depende da Proposta de Combate
É verdade que arte marcial não foi feita para marcar ponto, mas o esporte foi. Não posso usar a minha espada com a qual faço treinamento de corte para lutar com um amigo. Regras são necessárias até mesmo no treinamento de autodefesa para preservar a integridade física dos participantes. No esporte é a mesma coisa.
O esporte se difere da arte marcial em vários aspectos, inclusive em relação à eficiência em combate. Ele não é melhor ou pior poque é feito para marcar ponto e a arte marcial não é. Eficiência em combate é relativa à proposta de luta para a qual foi pensada. Assim, o esporte é eficiente para o tipo de combate que ele se propõe a ser.
Já a arte marcial enquanto autodefesa se propõe a ser eficaz para situações de agressão. Sendo assim, a melhor forma de testar a eficiência em combate das artes marciais seria em situações de risco. Pensando dessa forma, seria melhor que a eficiência em combate nem mesmo fosse testada de fato.
Ninguém É Melhor ou Pior por Praticar Esportes de Combate
Existe hoje uma tendência das artes marciais se transformarem em esportes de combate. Ela pode ser explicada pela teoria do processo civilizador, que é assunto para outro artigo. Mas é fato que esporte de combate não é arte marcial e arte marcial não é esporte de combate, são duas coisas simplesmente diferentes.
Entretanto, elas podem se relacionar. O esporte de combate pode estar dentro da arte marcial. Ele pode ser uma adaptação para que as pessoas possam ver quem é melhor dentro de um contexto específico ou simplesmente para se divertir, entre outras coisas.
Portanto, ninguém é melhor ou pior por praticar artes marciais ou esportes de combate. A eficiência em combate é algo muito relativo, depende do contexto. Fica a critério de cada um se vai praticar um ou outro ou até os dois juntos. Mas é fato que campeonatos não são a melhor ou única forma de se testar a eficiência em combate das artes marciais tradicionais.
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