Você sabia que durante a dinastia Ming, no século 16 a China foi invadida por piratas japoneses? Isso aconteceu durante o reinado do imperador Jiajing (1522-1567). O general Yu Dayou os cercou em Cencang durante 5 meses sem obter sucesso. Mas foi com o apoio do general Qi Jiguang que a batalha foi vencida. Lançado em 2017, o filme God of War retrata a atuação de Qi Jiguang na expulsão dos piratas japoneses da China. Nesse artigo eu vou te dizer como essa história tem tudo a ver com o seu treino.
God of War Ensina Sobre a História e COM a História
Embora a razão de ser deste blog seja como se desenvolver nas artes marciais, vez por outra eu indico algum filme ou série para ser assistida. Essa escolha nunca é aleatória, pois aqui eu não indico filmes apenas para entretenimento. As indicações se dão porque trazem algum ensinamento, alguma dica que pode ajudar a melhorar os seus resultados.
Confira abaixo o trailer oficial de God of War.
É claro que o filme possui elementos de ficção, de forma que a história possa ser contada de forma artística. Afinal, estamos falando de cinema e o cinema precisa entreter o público. Porém, o filme não é só ficção. Houve um consultor histórico para que a história não fugisse muito da realidade. Então o filme resume bem os feitos de Qi Jiguang contra os piratas.
Esse é um épico que conta uma parte da história das artes marciais chinesas. O general Qi Jiguang tem enorme influência sobre as práticas que hoje chamamos de kung fu ou wushu. Com ele podemos apreender uma parcela da história e aprender COM a história.
Os Wokou e o Dandao Fa Xuan
Uma das coisas que podemos aprender sobre história com God of War possui relação com o manual Dandao Fa xuan. Entre os piratas havia samurais, ronins (samurais que não serviam a nenhum shogun) e chineses, sendo que quem os chefiava era um chinês chamado Wang Zhi. No evento retratado no filme o comandante era Mao Haifeng.
Os chineses se referiam aos piratas como “wokou”. Wokou era um termo pejorativo relativo aos japoneses, que significava algo como “bandidos anões”. Além de chineses e japoneses, havia nativos do sudeste asiático e também portugueses, conforme este artigo. De acordo com este artigo, entre os wokou existiam também coreanos e mongóis. O mesmo artigo ainda cita que conforma a História de Ming, no século 16, somente 30% dos piratas eram japoneses, enquanto 70% eram chineses. Além disso, muitos oficiais corruptos Ming tinham relações com os wokou.
E qual a relação disso com o Dandao Fa Xuan?
Segundo seu autor Cheng Zong You, seu professor (o chinês Liu Yunfeng) aprendeu o método diretamente com os japoneses. Como esse método era utilizado pelos wokou, existe a hipótese de que Liu era um dos chineses pertencentes ao grupo. É fato que havia muitos chineses entre os wokou. A informação, que eu descobri por meio de God of War, de que o chefe dos piratas no período era um chinês dá mais suporte a essa tese.
O Que God of War Tem A Ver Com o Seu Treino
O que eu quero enfatizar sobre o filme God of War não é a história em si, ou seja, quais fatos aconteceram e como. Ao invés disso, quero apontar o que a história nos ensina e que passa despercebido pelo olhar puramente do entretenimento.
Qi Jiguang combateu os piratas de 1553 até pelo menos 1564. Entre 1553 e 1555, Qi Jiguang possuía menos de 10.000 soldados, sendo que muitos deles desertaram. Mesmo assim, ele obteve uma vitória decisiva em 1558 (57 de acordo com o filme) contra os piratas, ao lado dos generais Yu Dayou e Tan Lun. A história de God of War é um retrato desse confronto, embora certamente resuma todas as conquistas de Qi Jiguang nos 12 anos de luta contra os wokou numa única batalha.
De toda forma, o confronto é retratado de forma que o exército de Qi Jiguang fosse numericamente muito inferior em relação ao inimigo. Isso provavelmente deve ter acontecido nessa batalha, já que nessa época muitos dos seus soldados haviam desertado.
Qi Jiguang tinha um exército pouco treinado e dispunha de pouco tempo para treiná-los ao mesmo tempo em que treinava um novo exército. A questão que fica é: como ele foi capaz de vencer os piratas com um exército inferior numericamente e tecnicamente?
Qi Jiguang Prova Que a Tática Vence a Técnica
Embora seus soldados fossem inferiores tecnicamente em relação aos wokou, Qi Jiguang os treinou muito bem taticamente. Foi a superioridade tática que o tornou vencedor.
Para combater os piratas ele desenvolveu a formação pato mandarim. Embora o filme não foque na formação, ele dá uma ideia de como ela funcionava e mostra as armas que eram utilizadas. A formação foi registrada no Jixiao Xin Shu, manual escrito por Qi Jiguang em 1560 e publicado em 1562. Conforme Gyves (1993), ele foi escrito em Zhejiang e, portanto, reflete as camapanhas contra os piratas. Portanto, pode ter sido empregada contra os piratas no confronto de 1557.
É importante ressaltar que os generais eram reconhecidos pela sua capacidade tática e estratégica. Isso contrasta com o enfoque técnico que se dá hoje em dia para as artes marciais. Isso está bem esclarecido neste artigo do Guilherme Amaral Luz que questiona o significado de wushu enquanto “arte da guerra”.
Mais do que a técnica, no campo de batalha a coesão e as táticas grupais contavam muito mais do que a técnica individual. De acordo com Garganta (1995), o sucesso tático coletivo é definido por dois fatores. O primeiro é a cooperação entre os elementos do grupo para vencer a oposição. O segundo é a inteligência para se adaptar, elaborar e executar respostas a novas situações.
A História Ensina: É Preciso Desenvolver as Táticas
Embora a cooperação não possa existir no combate individual, podemos encarar o confronto individual como um microcosmo do confronto coletivo. Nesse contexto a inteligência se aplica como fator determinante do sucesso, pois se aplica tanto às táticas coletivas quanto às individuais.
O que isso significa?
Significa que se a inteligência tática foi responsável pela vitória de Qi Jiguang sobre os wokou, da mesma forma ela é fator determinante do sucesso no confronto individual. Essa é a lição que podemos tirar da história. A tática prevalece sobre a técnica, permitindo a vitória contra um adversário tecnicamente superior.
Isso significa que você não precisa se preocupar tanto em melhorar a sua técnica?
Claro que não. É importantíssimo desenvolver a técnica. Só que pouco adianta ser tecnicamente bom se você for taticamente medíocre, pois a tática é responsável por fazer sua técnica funcionar ou não.
Então guarde a lição que podemos aprender com God of War e com a História. É preciso desenvolver sua inteligência tática, pois ela conta muito mais do que a técnica no combate.
Agora, eu preciso da sua ajuda para responder nos comentários a seguinte pergunta: O que você entende por técnica, tática e estratégia? Seu comentário é importante para que eu possa preparar um artigo sobre esse tema.
E se você já assistiu God of War, você pode escrever o que achou do filme. Mas sem spoilers.
Bibliografia e Referências
CHENG, Zong You. Dandao Fa Xuan: Chinese Long Saber Techniques Anthology. Annandale: Seven Stars Books and Video.
GARGANTA, Júlio. Para uma teoria dos jogos desportivos. In: GRAÇA, A; OLIVEIRA, J. O ensino dos jogos desportivos. 2a ed. Porto: Universidade do Porto, 1995.
GYVES, Clifford Michael. An English Translation of Qi Jiguang’s “Quanjing Jieyao Pian”. Arizona: The University of Arizona, 1993.
Técnica, tática e estratégia. Técnica é habilidade; desempenhar conscientemente algo que pode ser aprendido e ensinado a partir de preceitos e métodos. Estratégia é um ato de planejamento; envolve um objetivo e o estudo dos meios pelos quais pode ser atingido; é um plano ou esquema que antecede ações efetivas para a consecução das metas traçadas. Tática é a disposição dos meios disponíveis e/ou que podem se tornar disponíveis para por em prática uma estratégia; envolve o estudo das condições específicas a serem enfrentadas e modos de tirar vantagens delas, minimizando riscos e potencializando os efeitos das ações. Em combate, as três coisas (além de outras) são importantes. Porém, em artes marciais, a depender dos objetivos, a técnica pode se tornar uma finalidade em si e o combate esportivo ou simulado (implicando em vitória ou derrota) apenas um meio de desenvolvimento da técnica, o que inverte a lógica da guerra, na qual a técnica é um meio para o desenvolvimento das estratégias e táticas de combate. A técnica, em artes marciais, também pode ser um meio de desenvolver o físico e/ou a mente, sem conexão necessária com o combate (esportivo ou militar). O mais interessante, inclusive se tomarmos Qi Jiguang como exemplo, é perceber que isto a que chamamos de “arte marcial” tem menos pepel no campo de batalha em si do que como exercício de desenvolvimento físico e mental.
Técnica táctica eu acho que é saber agir na hora certa com os treinos de aula obtidos.