Uma dúvida que paira na mente de muitos praticantes de artes marciais é qual é a arte marcial mais antiga. Muitos se especula sobre qual é a arte marcial que deu origem a todas as outras. Alguns dizem que a China é o berço das artes marciais, outros dizem que tudo começou na Índia. Neste artigo vamos esclarecer esse assunto.
As Artes Marciais na China Antiga
Muitos acreditam que o kung fu é a arte marcial que deu origem a todas as outras. Mas quando fazemos esta afirmação, caímos no primeiro erro: o kung fu não é uma única arte marcial. No ocidente se usa o termo kung fu como sinônimo de uma arte marcial chinesa, mas a verdade é que aquilo a que nos referimos como kung fu é um conjunto de centenas de artes marciais distintas. Assim, xingyiquan é uma arte marcial, wing chun é outra, tai chi é outra e assim por diante.
Há quem diga ainda que as artes marciais começaram na China, mais especificamente no Templo Shaolin com Bodhidharma. Ele teria ensinado aos monges exercícios de fortalecimento para que eles aguentassem os longos períodos de meditação. Eram uma espécie de yoga que ele teria aprendido na Índia. Mais tarde, estes exercícios teriam sido desenvolvidos e modificados, dando origem às artes marciais do Templo Shaolin. Outra versão desta lenda conta que o que Bodhidharma ensinou eram na verdade artes marciais, aprendidas na Índia. De todo modo, eu já expliquei no artigo anterior que não existe essa relação entre Bodhidharma e o kung fu. Mesmo assim, acredito que seja uma simbologia importante considerá-lo como o patriarca das artes marciais do Templo Shaolin.
Na verdade, as artes marciais começaram a ser praticadas no Templo Shaolin muito mais tarde do que se imagina. Além disso elas já eram praticadas na China muito antes da existência do Templo. Assim, o segundo erro é pensar que a arte marcial mais antiga surgiu no Templo Shaolin. Tanto que foi durante dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.) que surgiram as primeiras armas de aço do mundo. Você pode se aprofundar nessa história no artigo sobre a espada chinesa da dinastia Han.
As Artes Marciais na Índia Antiga
A tese de que Bodhidharma ensinou artes marciais aos monges do Templo Shaolin é a principal, se não a única, que sustenta que a arte marcial mais antiga veio da Índia. Embora ele não tenha ensinado artes marciais, isso não invalida a possibilidade de existirem artes marciais na Índia muito antes. E de fato existia, tanto na Índia, quanto na China, como foi dito anteriormente. Ambos os países possuem mais de 4 ou 5 mil anos de história e as artes marciais são tão antigas quanto.
China e Índia eram os grandes centros econômicos, culturais e científicos do leste asiático no passado, até o século 19. Era desses dois países que se disseminava o conhecimento no extremo oriente. Havia muito intercâmbio entre esses dois países, o que permitiu a disseminação do budismo na China. A rota da seda é outro exemplo disso. Desde aproximadamente 2.000 anos atrás até a Revolução Industrial, os dois países tinham provavelmente a tecnologia mais avançada no mundo.
As armas chinesas e indianas eram as mais avançadas, tendo os chineses inventado os mísseis. E foi por causa dos mísseis que os ingleses tiveram dificuldades para dominar completamente a Índia no século 18. Os indianos acoplaram lâminas aos mísseis, de forma que uma chuva de espadas caía do céu. Porém, muitas armas indianas eram completamente diferentes das armas chinesas. Um exemplo é o rajput kitar, que aparece aos 19:32 deste documentário sobre o império Mughal. Já os mísseis podem ser vistos a partir de 1h22 de vídeo.
Kalaripayattu Não É a Arte Marcial Mais Antiga
Muitas pessoas acreditam que a arte marcial mais antiga é uma arte indiana chamada kalaripayattu. Embora exista hoje, não se pode dizer que existiu há tanto tempo por vários motivos. Mas se houvesse a possibilidade de esta arte marcial ter se mantido intacta desde a sua criação, seria difícil acreditar que as artes marciais chinesas descendem desta. É só observar as posturas e grande parte das armas do kalaripayattu, que pouco se assemelham com artes marciais chinesas.
Outra arte marcial indiana que muitos dizem ser a mais antiga se chama vajramushti. Para compreender porque nenhuma delas pode ser a arte marcial mais antiga é preciso entender o processo de desenvolvimento das artes marciais.
A Necessidade do Combate e o Desenvolvimento do Cérebro
Desde os primórdios da civilização, os seres humanos tiveram a necessidade de se defender de animais e de outros humanos. Além disso, o homem pré-histórico dependia da caça para a sua subsistência. Então, seja para se alimentar ou defender o seu território, houve a necessidade do desenvolvimento de métodos de combate. Tudo começou com o desenvolvimento da estratégia, onde as primeiras táticas foram empregadas. Muitas dessas táticas ficaram registradas nas paredes de diversas cavernas ao redor do mundo sob a forma de arte rupestre. Surgiram aí as armas de madeira, pedra lascada e pedra polida, como lanças, facas e, inclusive, o arco e a flecha.
As primeiras armas de metal surgiram há mais ou menos 6.500 anos, no período chamado de Idade dos Metais, que teve início no Oriente Médio. Falei detalhadamente sobre a Idade dos Metais no artigo sobre a espada chinesa da dinastia Han. As primeiras armas eram de cobre, depois bronze e finalmente aço. Esse processo mostra como a humanidade sempre procurou formas de evoluir seus métodos de combate, independente da localidade. E nisso, métodos semelhantes foram desenvolvidos em várias partes do mundo. Basta olhar manuais do século 17 de artes marciais europeias como il Fior di Bataglia, De Arte Gladiatoria Dimicandi, entre outros. Neles você encontra as mesmas técnicas, as mesmas projeções, torções, golpes de espada que você encontra em qualquer arte marcial asiática.
O desenvolvimento do cérebro explica isso. Quando ele atinge determinado estágio de desenvolvimento, uma determinada descoberta aparece simultaneamente em vários locais. Assim, quando o cérebro humano atingiu o ponto de descobrir a roda, ela foi descoberta por várias pessoas em várias partes do mundo e no mesmo período. É o caso da Idade dos Metais, um período em que as técnicas de fundição foram descobertas e aperfeiçoadas em várias partes do mundo.
No início, a única preocupação era saber combater, saber utilizar uma arma e empregá-la de forma eficaz.
As artes marciais passaram (e talvez ainda passem) pelo mesmo processo, por causa da necessidade de combate aliada ao desenvolvimento cerebral. E no início, a única preocupação era saber combater, saber utilizar uma arma e empregá-la de forma eficaz. De lugar para lugar havia diferenças e variações, mas tudo era esgrima, tudo era lutar com espada, lutar com lança. Por isso não havia o que hoje chamamos de estilos, havia apenas o saber lutar. No máximo, em diferentes culturas, regiões e épocas, o que hoje chamamos de artes marciais recebia nomes diferentes. Nomes diferentes para a mesma coisa, como o jogo de taco, que em alguns lugares é chamado de bets e possui regras um pouco diferentes. Como macaxeira, mandioca e aipim, nomes diferentes para a mesma raiz.
A ideia de estilos é algo muito recente, isso começou por volta do século 16. Antes disso as pessoas se preocupavam apenas em saber lutar, em procurar os melhores professores e métodos. Com o tempo, estes métodos foram cada vez mais sistematizados, adquirindo características distintas de treinamento e estratégia. Assim, foram recebendo nomes e dando origem ao que hoje chamamos de estilos ou artes marciais diferentes. Por isso, nenhum ou quase nenhum estilo que exista atualmente existia há como tal há 200 anos atrás. Muito menos os seus nomes.
A Arte Marcial Mais Antiga
Tendo visto todos esses fatores, o kalaripayattu não é a arte marcial mais antiga, assim como nenhuma arte marcial chinesa. Mesmo antes do surgimento dos estilos, as artes marciais já existiam no mundo todo, com as mesmas características. Elas existem desde épocas em que o contato entre oriente e ocidente não era suficiente para que uma única arte marcial influenciasse todas as outras.
Assim, não existe algo que possamos considerar como a arte marcial mais antiga. Arte marcial é uma coisa só, o corpo humano funciona da mesma forma para qualquer pessoa em qualquer lugar. Por isso, as técnicas possíveis são as mesmas em qualquer lugar e todos os povos tem a mesma capacidade de descobri-las. A arte marcial não é algo estático, mas um processo de construção e desconstrução ao longo do tempo. É modificada continuamente para atender necessidades do contexto em que está inserida. Por isso não existe uma arte marcial intacta desde a sua criação e nem como defini-la como a arte marcial mais antiga.
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